Do Huambo á Camela, a estrada murmurava uma melodia conhecida—idas ao mercado, um carregamento rápido de saldo, o fresco silêncio da biblioteca, fachadas municipais a guardarem os seus segredos ao meio-dia. O jipe seguia firme, metrónomo sobre rodas. Às vezes levava passageiros, embora não gostasse—o comité de gostos a reprovar a minha música, a mão do estranho com comichão no botão do rádio. Ainda assim, a estrada pede companhia.
Em Cambiote, uma mulher conhecida fez-me sinal. As tranças rentes brilhavam ao sol. Um bebé dormia encostado a ela, mexeu-se com uma queixa mansa. Subiu, auyycomodou-se num canto, ergueu a blusa; a criança pegou-se ao peito com a graça obstinada de um hino. Um saco pousado aos pés—pão, óleo, dois ou três essenciais luminosos. O agradecimento trazia o alívio de quem foi poupado ao calvário: candongueiro, motorizada, outra boleia até Chiumbo. “Deixo-te à porta”, disse. Éramos parentes—Manico tece-nos primos a todos—, mas, na nossa província, o parentesco corre como um rio manso: sente-se a corrente antes de se ver a água.
Nuvens e chuvisco teceram um véu sobre as colinas. A primeira chuva levanta o óleo do alcatrão e torna a superfície escorregadia, por isso abrandei o andamento. A Pedra Limão ficou para trás. Campos e aldeias subiam e desciam como uma respiração. Passámos o desvio para a Missão do Kwando. O verde afinava o mundo. À porta de uma igreja vermelha e amarela, vozes ensaiavam—promessa de domingo guardada na paciência de sábado. O gado derivava como notas lentas; garças empoleiradas no dorso desafiavam o puxão da gravidade.
Pus “Kabu”, de Aster Aweke, e o habitáculo mudou de tom. O olhar da mulher ia do bebé à janela, da janela ao bebé. A música passou um fio por nós—estrada, canção, o ato de alimentar—, uma só corrente, sem maestro. Os meus olhos trabalhavam os espelhos, adestrados pelo hábito: o que segue atrás, o que ultrapassa, o que espreita no ângulo morto. Cada vislumbre apanhava-a em miniatura: cabeça baixa, depois erguida; olhos longínquos, a traçar um mapa íntimo onde a melodia cruzava caminhos.
A cadência de Aster esbateu-se; Nina Simone entrou como uma tempestade. A criança, embriagada de leite, adormeceu. A mulher, presa ao transe da canção, esqueceu-se de se cobrir. O leite formava pérolas na pele; o seio, pesado de propósito, esperava um encore que não veio. A estrada brilhava, os limpa-para-brisas marcavam o tempo, e a música baixou o teto do habitáculo até partilharmos uma única nota.
No espelho, surgiu uma motorizada, mão erguida. Ela acenou, a sorrir. “Meu marido”, disse. Travei. Era robusto, o impermeável a brilhar—um rosto de Manico, familiar e sem nome. Tratou-me por tio, ergueu a mota para a traseira do jipe como se nada pesasse. Sentou-se junto dela; o alívio de ambos harmonizou-se, um acorde a resolver-se.
Luther Vandross encheu o ar, veludo largo. Estendi a mão ao botão. “Mais baixo?” “Não”, riu-se, “mais.” Talvez não apanhasse a letra, mas a música não é contrato; é maré. Conduzi devagar, não a pedir desculpa pela cautela, mas a honrar o ritmo do dia. No espelho, o olhar dela prendia-o, a memorizar o instante por dentro. Ele inspeccionou o saco, ergueu um frasco de compota com o sorriso de rapaz—pão, chá, um serão sem sobressaltos. Ela tomou-lhe a mão. Ele retesou-se um instante, o pequeno pudor da propriedade, e depois cedeu. Os seus micromovimentos diziam: sossega, a canção leva-nos.
Ele encontrou um rebuçado no bolso e pousou-lho na língua. Os olhos dela cerraram-se; desabrochou um sorriso tímido, sem pressa. Os lábios tocaram-se—breve, uma coda furtada—, e o olhar que se seguiu disse algo antigo e comum: és meu, sou tua, que o mundo fique com os seus juízos.
A chuva adensou-se. “You’re the Only One”, de Jimmy Cliff, transformou o jipe num pequeno teatro de votos não ditos. Ela embalou-se na canção e voltou ao prático: uma bolacha partida com limpeza, metade na palma dele, seguida de um pequeno pacote de sumo. Graça doméstica, perfeitamente orquestrada. Atrás de nós, as poças ensaiavam o futuro; à frente, a estrada abria-se para a arte lenta de chegar.
Pedi desculpa pelo andamento. “As pessoas não gostam da minha condução.”
“O que importa é chegar”, disse ele. “Conduz como um homem civilizado, tio—respeito pela estrada.”
Conduzir, disse-lhe, é a minha maneira de ouvir.
Camela surgiu da chuva. Parámos no carreiro do quintal. Num gesto único, ela arrumou as compras, prendeu o bebé às costas com a precisão do costume e subiu para a mota atrás dele, as ancas e as mãos a encontrarem o seu lugar certo. Antes de arrancarem, inclinou-se até à minha janela.
“Obrigada pela música”, disse, o umbundu a coser-lhe o português. “Levou-me aonde sonho ir. A música faz-me sonhar. Obrigada pelos sonhos.”
Desapareceram no verde, duas notas a levarem uma melodia partilhada por um caminho vermelho. Fiquei na ressonância—os limpa-para-brisas a encontrarem um compasso final, o motor ao ralenti como um baixo satisfeito—e deixei que a estrada me levasse a casa.
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