Destaques:

O Poliglota, o Uncle Ben e o Problema dos Acentos- Sousa Jamba

Num episódio recente do já icónico Fly Podcast de Angola — esse Coliseu verbal onde reputações se magoam, egos se exibem e patrocinadores de telecomunicações pairam como deuses digitais benevolentes — houve um momento, entre as habituais acrobacias linguísticas, que me deixou com uma dor curiosa na alma.

Ocorreu quando um professor de inglês — creio que se apresenta como Poliglota — declarou, com um orgulho inconfundível, ter aprendido inglês através das letras de Lil Wayne.

Ora, sou a última pessoa a desvalorizar a poesia do rap. Vivi tempo suficiente nos Estados Unidos para saber que o hip-hop não é apenas uma forma de arte; é um arquivo de dor, resiliência, engenho e, por vezes, de metáforas tão intrincadas que envolvem jóias, legumes e jactos privados.

Mas quando o Poliglota abriu a boca, não emergiu apenas inglês; emergiu um sotaque afro-americano profundo, ondulante, quase geológico — tão regionalmente preciso, tão Atlanta-via-Houston-via-Brooklyn — que até eu, homem que já comeu grits na Geórgia e discutiu política numa barbearia do Harlem, estremeci interiormente ao imaginar os meus filhos a falar daquela maneira.

 

Naturalmente, trata-se de um tema delicado. Há que pisar com cuidado, para não ser confundido com algum nostálgico colonial a suspirar pelas vogais da Rainha. O inglês vernacular afro-americano (AAVE, na sigla inglesa), como lhe chamam os linguistas, é uma forma de expressão legítima e riquíssima, enraizada na memória cultural e moldada por séculos de improvisação, resistência e migração. Os dialectos Gullah das Carolinas, por exemplo, preservam palavras como kasule e gumball (quiabo) que têm raízes profundas no solo da África Ocidental. Não são meras curiosidades linguísticas; são ecos de nós próprios.

 

Ainda assim, impõe-se a pergunta: que tipo de inglês devem os nossos filhos aprender para prosperar no mundo?

 

Entra o Uncle Ben.

 

Não o magnata do arroz, mas o professor de inglês sediado em Luanda, que fala com a precisão fresca e recortada de um locutor da BBC por volta de 1963 — daqueles que dizem schedule com um “sh” suave e fazem pausas nos pontos finais como se fossem momentos de reflexão nacional. Se me dessem a escolher — digamos que alguém em Angola me ligava a pedir para patrocinar aulas de inglês para os meus sobrinhos — transferiria, sem hesitar, os fundos necessários para os inscrever nas aulas do Uncle Ben. Porquê? Porque um sotaque britânico claro, mesmo que adquirido por osmose ou teimosia, circula bem. Abre portas não só em Londres, mas também em Bruxelas, em Genebra e até em Nova Iorque, onde um sotaque polido num corpo negro emite discretos sinais de educação, classe e (não nos iludamos) inteligência percebida.

 

Não se trata aqui de superioridade linguística; trata-se de estratégia de mercado.

 

Recordo-me de ter ouvido Mike Tyson dizer, com imenso orgulho, que o filho falava com um sotaque refinado porque frequentara uma escola privada cara. E não tenho dúvidas de que o próprio Lil Wayne, o milionário do bling e das punchlines, mandaria os seus filhos aprender inglês com o Uncle Ben.

 

Nos próprios Estados Unidos, há famílias negras abastadas que pagam pequenas fortunas para que os filhos sejam treinados na chamada “voz NPR” — esse registo melodioso e ritmado que soa como se estivesse sempre a beber chá de hortelã. Porquê? Porque funciona. Consegue empregos. Acalma patrocinadores nervosos. Diz: “Leio The Atlantic sem ironia.”

 

Assisti a isso na minha própria casa. Quando os meus filhos eram pequenos, levava-os à escola todas as manhãs com o rádio do carro sintonizado na National Public Radio. Com o tempo, uma das minhas filhas — que hoje trabalha em cinema e locução — desenvolveu um sotaque NPR absolutamente impecável. Continua a alternar, com mestria, para o registo afro-americano quando fala com amigos ou em modo performativo. Mas também consegue transformar-se, num instante, numa narradora de voz aveludada, daquelas que apresentam documentários sobre microplásticos ou explicam a política monetária global. Esse sotaque abriu-lhe portas. Pagou contas. E, atrevo-me a dizer, foi mais útil para ela do que Lil Wayne jamais seria.

 

E isso traz-me de volta a Angola. Continuo profundamente impressionado com figuras como Anderson Mário, cantor e filósofo ocasional, que fala inglês fluentemente — mas com a cadência inconfundível de quem é daqui. O seu sotaque, embora distintamente angolano, não é afectado; é o produto da aspiração filtrada pela autenticidade. E talvez essa seja a proporção de ouro: aspirar à clareza, à inteligibilidade global, mas nunca à custa da identidade.

 

Pensemos assim: filmamos em 4K para que, quando o vídeo for comprimido, editado e algoritimicamente triturado pelo TikTok, ainda mantenha nitidez em 1080. Aspiramos alto para que o resultado final, mesmo depois de traduções culturais, distorções e mil reenviamentos no WhatsApp, conserve a sua dignidade.

 

Portanto, sim, deixemos os Poliglotas ensinar — mas que saibam que há uma diferença entre ser compreendido e ser meramente performativo. E eu, se tivesse de escolher entre o sotaque do Uncle Ben e o de alguém cujo plano curricular inclui Lil Wayne e um hook ocasional da Cardi B — sei perfeitamente onde depositaria a minha transferência bancária.

 

Afinal, o futuro pertence àqueles que sabem conjugar to be com estilo, precisão — e uma pitada estratégica de swag.

Contactos

Rua 2, Avenida Brazil, Luanda

+244 923 445 566

pontodeinformacao@pontodeinformacao.com

Siga-nos

© Todos os direitos reservados.