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Não podemos ter boa justiça, quando os tribunais são injustiçados pelo Executivo

Luanda - Assumiu o cargo de bastonário da Ordem dos Advogados de Angola (OAA) há cerca de ano e meio, por via de renhidas eleições, em substituição do jurista Luís Paulo Monteiro.

*Ilídio Manuel
Fonte: Novo Jornal

Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, José Luís António Domingos não tem tido um consulado pacífico devido às suas posições ousadas em defesa da classe e de causas sociais, algumas das quais já levaram ao chumbo de leis inconstitucionais junto do Tribunal Constitucional.


À boca pequena, diz-se que o advogado figura entre os alvos a abater pelo regime, no quadro de uma suposta cruzada movida contra si, com calúnias e difamações de permeio, com o objectivo de apeá-lo do púlpito.


Em entrevista exclusiva ao NJ, José Carlos Domingos faz um balanço do seu consulado e uma breve incursão em questões da vida política e social do país.


Está há cerca de ano e meio à frente da OAA. Que balanço faz do seu consulado?
O balanço é positivo, visto que temos trabalhado com dedicação e compromisso diário para dignificar a classe e reforçar o papel da OAA como garante do Estado de Direito. Enfrentamos, contudo, limitações significativas, nomeadamente a ausência de um tratamento justo por parte do Executivo quanto à atribuição de um orçamento próprio à OAA, ao contrário do que acontece com outros operadores judiciários. Esta carência compromete o cumprimento integral e eficaz das nossas atribuições constitucionais.


Apesar disso, registámos progressos assinaláveis, apostámos fortemente na capacitação técnica dos advogados, como demonstram os cursos de línguas em curso e outras formações especializadas.


No domínio da protecção social, firmámos parcerias que facilitam o acesso aos serviços de saúde e seguros em condições vantajosas para os colegas, e preparamos a implementação de um fundo de apoio financeiro que oferecerá segurança adicional no futuro.


Prosseguimos com a remodelação das salas de trabalho para os advogados nos tribunais, temos em curso a reforma dos normativos internos da Ordem — com enfoque no reforço do regime de imunidades dos advogados — e continuamos a desenvolver acções em defesa da legalidade, da justiça e dos direitos fundamentais dos cidadãos.


Implementámos uma verdadeira revolução digital na Ordem. O portal do advogado permite hoje a plena interacção com os serviços da OAA sem necessidade de deslocação física, e introduzimos uma nova cédula profissional moderna e segura, compatível com os padrões internacionais.


No plano da transparência, promovemos uma cultura de responsabilidade e prestação de contas: em menos de dois anos, submetemos à aprovação da classe o plano de actividades, os respectivos orçamentos e os relatórios de contas, todos aprovados praticamente por unanimidade.

O que lhe oferece dizer sobre a nova Lei da Advocacia em debate na AN?

No plano legislativo, promovemos a elaboração e discussão pública de propostas para a revisão do Estatuto da OAA, assim como oferecemos contributos técnicos relevantes à proposta da nova Lei da Advocacia em debate na Assembleia Nacional.

Reforçámos a cultura de compliance e responsabilidade jurídica, com a implementação de procedimentos internos de controlo e transparência, aprovação de normativos sobre conflitos de interesse e boas práticas administrativas, bem como a capacitação dos quadros da Ordem em matérias de integridade e gestão institucional.


No campo dos direitos humanos, organizámos um colóquio nacional com a participação de organizações da sociedade civil e ONG´s, reforçando o posicionamento da Ordem como defensora dos direitos fundamentais a nível nacional e internacional.


Participámos activamente em redes e fóruns internacionais ligados à defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão, fortalecendo o prestígio da advocacia angolana além-fronteiras.

Estes avanços demonstram que, mesmo perante limitações orçamentais, a OAA tem conseguido afirmar-se como uma instituição actuante, moderna e comprometida com os mais elevados padrões de ética, justiça e cidadania.

Durante a campanha eleitoral, prometeu fortalecer o Estado de direito e conferir maior dignidade aos advogados. O que já fez de concreto?

Temos desenvolvido acções concretas para a consolidação do Estado democrático de direito e a valorização da advocacia. Celebrámos um acordo com a Associação dos Juízes de Angola (AJA) para promover o diálogo nacional sobre a reforma da justiça e participámos activamente em reuniões de coordenação judicial, onde apresentámos propostas para o aperfeiçoamento do sistema. Realizámos visitas a tribunais e estabelecimentos prisionais em diversas províncias, avaliando no terreno as condições de acesso à justiça, sobretudo para os mais vulneráveis.


Reforçámos a assistência jurídica gratuita com a promoção contínua de consultas públicas em várias regiões do país, defendemos a implementação plena da figura do defensor público — consagrada na Constituição — e reivindicámos de forma persistente o aumento das verbas para o apoio judiciário, essencial para uma remuneração condigna dos advogados que prestam esse serviço.


Assumimos uma postura firme na defesa da legalidade, interpondo acções junto ao Tribunal Constitucional contra normas que consideramos inconstitucionais, como o regime jurídico do NIF e a Lei do Vandalismo, e emitimos pareceres e alertas sempre que identificámos ilegalidades em actos normativos do Executivo.


Organizámos ainda um colóquio nacional sobre direitos humanos com organizações da sociedade civil e ONG´s de todo o país, elaborámos relatórios com recomendações e reforçámos a participação da OAA em fóruns internacionais de defesa dos direitos fundamentais, entre outras actividades.


Estas acções consolidam o compromisso da OAA com o Estado de Direito, a justiça acessível e a valorização da advocacia como pilar essencial do sistema democrático.

 

Em matéria de patrocínio judiciário, qual foi o desempenho da OAA?

Reforçámos a assistência jurídica gratuita com a promoção contínua de consultas públicas em várias regiões do país, defendemos a implementação plena da figura do defensor público — consagrada na Constituição — e reivindicámos de forma persistente o aumento das verbas para o apoio judiciário, essencial para uma remuneração condigna dos advogados que prestam esse serviço.

A OAA tem reafirmado a centralidade do patrocínio judiciário como expressão do compromisso com os direitos fundamentais.


Apesar das dificuldades financeiras, mantivemos a prestação de assistência jurídica aos cidadãos economicamente carenciados, defendendo sistematicamente a valorização e remuneração condigna dos advogados envolvidos. Reiterámos a necessidade de um fundo específico para o patrocínio judiciário, previsto na Constituição, e temos exigido do Executivo um compromisso mais sério neste domínio. Porém, o quadro é mau e precisa de ser urgentemente revisto, somos de opinião de que é o momento de implementarmos em Angola a defesa pública constitucionalmente consagrada, seguindo exemplo de outros países, cito o brasil que é um caso de grande sucesso.


Alimenta a esperança de que a situação financeira venha a melhorar a curto ou médio prazo?

Temos mantido diálogo permanente com o Executivo neste sentido e, em relação ao ano passado, houve melhorias significativas, apesar de insuficiente.

Acreditamos que o quadro será cada vez mais aceitável neste sentido. Pois, a ausência de financiamento adequado compromete a sustentabilidade da assistência [judiciária], pelo que continuamos a reivindicar a institucionalização de um orçamento próprio e a criação de mecanismos eficazes de apoio ao patrocínio judiciário.

 

Houve melhorias nas condições de trabalho nos tribunais?

Em algumas localidades, verificaram-se melhorias pontuais, nomeadamente em instalações físicas. No entanto, a maioria dos tribunais continua a carecer de condições dignas para o exercício da advocacia. A OAA tem mantido uma postura firme na denúncia destas deficiências e na reivindicação de melhores condições de trabalho para os operadores judiciários.

Finalmente, depois de muita persistência, prevaleceu a solidariedade institucional, pelo que o Conselho Superior da Magistratura Judicial autorizou a OAA para remodelar as salas dos advogados nos tribunais. Tentaremos com o pouco que temos de melhorar as salas de alguns Tribunais no país, isto para salvaguardar a saúde dos advogados e a dignidade da classe.

 

Que avaliação faz da promessa pelo PR, em 2017, segundo o qual: "Ninguém é suficientemente rico que não possa ser punido, ninguém é pobre demais que não possa ser protegido"?

A frase expressa um ideal nobre, mas ainda distante da realidade prática. A justiça deve, de facto, ser acessível para todos, infelizmente, persistem sinais de desigualdade no tratamento judicial, o que exige reformas estruturais e conjunturais no sistema de justiça.


Não podemos ter boa justiça, quando os tribunais são injustiçados pelo Executivo. Sem um poder verdadeiramente independente e eficiente, a justiça será sempre um sonho distante de ser concretizado para os angolanos.


O nosso Estado de Direito é embrionário e corre sérios riscos de ser abortado. É o momento de apostarmos seriamente no seu nascimento completo e saudável.

Do seu ponto de vista da OAA, há uma verdadeira separação de poderes em Angola?

Formalmente, sim. Contudo, na prática, observam-se interferências do poder político no funcionamento do poder judicial, que estão bem identificadas, quer pela dependência orçamental, quer pela nomeação discricionária dos presidentes dos tribunais superiores, entre outros constrangimentos, que devem ser estudados com profundidade na tão necessária reforma, que deve ter no centro os principais operadores da justiça e não os políticos ou juristas políticos.

No que diz respeito ao combate à corrupção: êxito ou fracasso?

O combate à corrupção foi anunciado com vigor, mas carece de consistência e imparcialidade. A falta de transparência, a morosidade processual e a selectividade nas investigações e julgamentos comprometem os resultados. Sem um sistema judicial independente e célere, este combate será sempre limitado.

Como tem sido a relação da OAA com as demais instituições judiciais?
Temos mantido um diálogo institucional respeitoso, mas firme. Exigimos o reconhecimento do papel constitucional da advocacia e rejeitamos qualquer tentativa de marginalização dos advogados nos processos judiciais. Quando necessário, reagimos publicamente e com acções legais.
Em relação ao debate sobre o pacote eleitoral que foi impedido por força de uma decisão judicial. O que tem a dizer?

A decisão de impedir o debate foi preocupante e revelou a fragilidade do espaço público democrático. A providência cautelar foi surpreendente, quer pela celeridade, quer pela falta de fundamentos jurídicos consistentes. Devemos ser exemplares no respeito das instituições, logo, acatamos a decisão judicial imediatamente e despoletamos os instrumentos legais disponíveis no nosso ordenamento para a reagirmos ao triste cedido que envergonha o Direito e demostra a fragilidade das nossas instituições.

Acredita que houve interferência política nesse processo?

Quando um acto académico é travado de forma tão célere e sem justificações plausíveis, a suspeita de interferência política é legítima. Trata-se de um sinal de alarme para todos os que acreditam num Estado de Direito.

A OAA foi avisada da providência ou apanhada de surpresa?

Fomos completamente apanhados de surpresa. Não houve comunicação prévia. Essa postura dos nossos colegas colide como o nosso código deontológico.

 

Foi acusado de ligações à UNITA e ao Movimento cívico MUDEI. Confirma?

Essas acusações são infundadas: nunca fui militante da UNITA nem integro qualquer movimento político. A minha lealdade é com a advocacia e com os princípios democráticos. Trata-se de uma tentativa de descredibilização sem qualquer base factual. Na verdade, tentaram impedir a nossa vitória nas eleições com os mesmos argumentos e vencemos. Sabemos que são estratégias antigas utilizadas, infelizmente, na nossa sociedade para silenciar quem pensa diferente.

Acredita na existência de uma campanha para afastá-lo da liderança da OAA?
Existem sinais de uma campanha de desestabilização, mas as tentativas de criar ruído e instabilidade interna não vão desviar-me do essencial: a defesa da classe e do Estado de Direito.


Sei que irão inventar cada vez mais inverdades em relação à minha pessoa e à instituição OAA, mas estamos descansados porque sabemos que a classe e os angolanos de bem sabem quem somos e têm-nos defendido de forma muito coerente e satisfatória.

Quem estaria por detrás dessa campanha? Há “mãos invisíveis”?

Não especulo sobre nomes, mas é evidente que a nossa missão disruptiva a favor da dignidade dos advogados e da defesa do Estado de Direito incomoda os inimigos da justiça, do respeito da dignidade humana e do patriotismo. Estamos atentos e determinados a resistir a qualquer tentativa de intimidação.

Sobre a criação de um Tribunal Eleitoral, proposto pela sociedade civil, com o MUDEI à testa…

Além disso, é preciso melhorar o nosso sistema eleitoral, democratizar mais a eleição do cargo de presidente da CNE, porquanto, pensamos que já não se justifica que seja um monopólio dos juízes; repor o candidato independente nas eleições presidências, que hoje é monopólio dos partidos políticos; adoptar um modelo de eleição que permita uma melhor repartição do poder, em vez do modelo, como se diz “ quem ganha, ganha tudo e quem perde fica sem nada”, ou seja, o modelo que permita a coabitação de várias forças políticas no poder em vez do tradicional modelo – partido no poder e oposição.

 

Sobre as autarquias: há mesmo vontade política para a sua implementação?

As evidências apontam para a falta de vontade política dos principais actores. A constante postergação e os argumentos técnicos usados como pretexto revelam resistência à descentralização do poder.

 

Acredita que as autarquias acontecerão antes de 2027?

Tenho dúvidas fundadas. O discurso oficial não é acompanhado por acções concretas.

Como avalia o desempenho da comunicação social?
Há progressos pontuais, mas a cobertura dos assuntos jurídicos continua a ser muitas vezes sensacionalista e mediática, pelo que é necessário incidir cada vez mais nos problemas estruturais e conjunturais da justiça, em vez de ser utilizada como o palco principal para os julgamentos antecipados na praça pública.
Sobre a Reforma da Justiça, o que urge mudar?

Urge garantir a autonomia financeira dos tribunais, implementar a rotação das presidências dos tribunais superiores, despolitizar as nomeações judiciais e investir na informatização do sistema, entre outras alterações. Só assim teremos uma justiça célere e independente. E esta decisão depende dos políticos, pois, sem vontade política não teremos uma verdadeira reforma em Angola. Porém, quem enquanto governa não permite que os tribunais sejam independentes, será julgado pelos tribunais dependentes dos novos governantes. É uma lição histórica que se repete constantemente em África.

Acredita na venda de sentenças denunciada em tempos pelo antigo bastonário da OAA, Raul Araújo?

Infelizmente, há indícios sérios de corrupção no sistema judicial. Temos apelado à coragem de todos para que denunciem tais actos. Só assim, este mal, que tem desgraçado vidas, pode ser atenuado. O silêncio cúmplice alimenta esta prática.

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