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CNE: Desafios à Imparcialidade e ao Estado de Direito - Denilson Duro

Luanda - A democracia, como sistema político, encontra o seu ponto de afirmação e renovação nos processos eleitorais. Eleições livres, justas e transparentes constituem o mecanismo essencial através do qual os cidadãos exercem a sua soberania e renovam o contrato social com os seus representantes. No entanto, para que tal seja possível, é imprescindível que os processos eleitorais sejam administrados por instituições robustas, isentas e tecnicamente capazes, cujo único compromisso seja com a verdade eleitoral e a legalidade democrática.

Fonte: Club-k.net

Em Angola, a recente decisão do Tribunal Constitucional, plasmada no Acórdão n.º 994/2025, que confirma a composição da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) com base em quotas partidárias, reacende o debate em torno da imparcialidade e da profissionalização da administração eleitoral. A posição do Tribunal, embora baseada numa leitura do actual ordenamento jurídico, entra em clara dissonância com os princípios estabelecidos pela Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), da qual Angola é Estado-Membro signatário.

I. O Contexto Angolano: Uma CNE Politicamente Partidarizada

A composição actual da CNE angolana, conforme sustentado pelo Tribunal Constitucional, reflecte a representação das forças políticas com assento parlamentar, nomeadamente o MPLA, UNITA, PRS, FNLA e PHA. Tal modelo foi justificado como expressão da vontade popular, dado que os partidos representados na Assembleia Nacional são, em tese, mandatários do povo. Contudo, essa justificação não resiste a uma análise mais crítica, pois transforma a administração do processo eleitoral num prolongamento do debate político-partidário, violando o princípio da neutralidade institucional.

Como afirmou López-Pintor (2000), “uma administração eleitoral eficiente e legítima deve funcionar como um árbitro acima das partes, e não como um actor do jogo político.” Esta advertência é particularmente pertinente no contexto angolano, onde a história recente revela uma profunda desconfiança por parte de segmentos significativos da sociedade em relação à independência e isenção da CNE.

II. As Directrizes da SADC: Um Compromisso Regional Esquecido

A SADC, ao rever em 2015 os Princípios e Directrizes para Eleições Democráticas, introduziu parâmetros inequívocos quanto à constituição dos órgãos de gestão eleitoral. O ponto 5.1.3 estabelece que os Estados-Membros devem criar órgãos eleitorais “imparciais, profissionais, independentes, inclusivos, competentes e responsáveis”, compostos por comissários apartidários, dotados de competência técnica e administrativa.

Este enunciado normativo não é meramente declarativo: trata-se de um compromisso político e jurídico assumido voluntariamente pelos Estados-Membros. Ao mantê-lo no plano simbólico, sem transposição efectiva para o ordenamento jurídico nacional, Angola incorre em omissão comprometedora e revela falta de vontade política em alinhar-se com os padrões mínimos regionais de integridade eleitoral.

Países como a África do Sul e o Botswana são frequentemente apontados como bons exemplos de conformidade com essas normas. A Independent Electoral Commission da África do Sul é internacionalmente reconhecida pela sua autonomia funcional, integridade e capacidade técnica, sendo composta por especialistas seleccionados com base em critérios públicos e transparentes. No Botswana, embora ainda haja desafios, o modelo de gestão eleitoral afastou-se há muito das indicações partidárias directas, permitindo maior credibilidade aos processos.

A nível continental, Cabo Verde destaca-se por uma Comissão Nacional de Eleições com forte perfil técnico e institucionalmente independente, o que lhe garante uma das classificações mais elevadas em termos de qualidade da democracia africana segundo o Mo Ibrahim Index. A lição é clara: sem independência e profissionalismo, não há processo eleitoral que inspire confiança.

III. Implicações Jurídico-Políticas da Incompatibilidade

A incompatibilidade entre o modelo angolano e os princípios da SADC gera um conjunto de consequências jurídico-políticas que não podem ser ignoradas:

1. Comprometimento da credibilidade eleitoral – A permanência de um modelo partidarizado da CNE gera suspeições recorrentes sobre manipulação dos resultados e favorecimento de determinadas forças políticas, corroendo a confiança dos eleitores no sistema democrático.


2. Base para contestações internas e externas – O desfasamento entre as práticas institucionais nacionais e os compromissos internacionais de Angola pode servir de fundamento para contestações eleitorais junto de instâncias regionais e globais, como a União Africana e as Nações Unidas, pondo em causa a legitimidade das autoridades eleitas.

3. Bloqueio à reforma institucional – A manutenção do status quo dificulta a criação de consensos nacionais sobre a reforma do sistema político, alimentando tensões e crises pós-eleitorais que fragilizam a governabilidade e a coesão nacional.

4. Desalinhamento com a agenda internacional de boa governação – Em tempos de globalização política e cooperação multilateral, Angola arrisca-se a ficar isolada em matéria de democracia, perdendo oportunidades de apoio técnico e financeiro de parceiros internacionais que condicionam a ajuda ao respeito pelas normas democráticas universais.


IV. Caminhos para uma Reforma Estrutural e Modernizadora

A reforma da administração eleitoral angolana deve obedecer a uma abordagem multidimensional e integradora. Algumas medidas essenciais incluem:

1. Revisão da Lei Orgânica da CNE (Lei 12/12) – É necessário rever o artigo 7.º e demais dispositivos que permitem a interferência directa dos partidos políticos na composição do órgão eleitoral. Um novo modelo deve prever a constituição de um comité independente de selecção, composto por representantes da academia, da magistratura, da sociedade civil e de instituições internacionais de credibilidade.


2. Criação de critérios meritocráticos e técnicos para os comissários – A selecção deve obedecer a princípios de transparência, publicidade e concurso público, valorizando competências em áreas como direito eleitoral, administração pública, tecnologias da informação e ética pública.


3. Digitalização e auditoria tecnológica do processo eleitoral – Investir em soluções tecnológicas confiáveis (biometria, blockchain, centros de dados independentes) é crucial para garantir integridade, rapidez e rastreabilidade dos resultados. A experiência do Quénia com o sistema KIEMS, embora com desafios, é um exemplo de tentativa séria de transparência tecnológica.


4. Formação contínua e certificação internacional dos quadros da CNE – Parcerias com instituições como a International Foundation for Electoral Systems (IFES) ou o International IDEA podem garantir o acesso a programas de capacitação de excelência, permitindo profissionalizar a função eleitoral.


5. Participação da sociedade civil como pilar de fiscalização – Organizações não-governamentais, universidades e observadores independentes devem ser integrados formalmente na supervisão do processo eleitoral, tal como ocorre em democracias consolidadas.


V. Uma Nova CNE para um Novo Futuro Democrático

O futuro democrático de Angola depende, em grande medida, da sua capacidade de reformar as suas instituições eleitorais. Como afirmou Thomas Carothers (2006), “a confiança dos cidadãos nas eleições é o cimento da democracia; quando essa confiança falha, todo o edifício democrático corre o risco de ruir”. Angola não pode continuar a ignorar os sinais da sua própria sociedade civil, os compromissos assumidos com a SADC e os exemplos positivos do continente.

Chegou o tempo de ousar a mudança, de romper com a partidarização institucional e de afirmar uma nova geração de gestão eleitoral baseada em princípios, técnica e ética. A CNE não pode ser um campo de batalha político: deve ser uma instituição da República ao serviço da nação.

A democracia angolana merece mais. E essa nova página começa com uma CNE verdadeiramente independente, imparcial e competente.

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