Luanda - A recente visita do presidente angolano, João Lourenço, a Portugal reacendeu debates delicados sobre a memória colonial e as persistentes tensões políticas que historicamente marcaram as relações entre os dois países — frequentemente permeadas por episódios de desentendimento, os chamados “irritantes”.
Fonte: Club-k.net
Em entrevista à CNN, Lourenço defendeu um tratamento mais justo aos imigrantes em Portugal, lembrando a hospitalidade que os portugueses sempre encontraram em várias regiões, especialmente em Angola, tanto durante o período colonial quanto após a independência. Portanto, em tempos mais recentes, políticas de austeridade levaram muitos portugueses a emigrarem em busca de melhores oportunidades, o que reforça, segundo ele, a importância de uma abordagem mais empática e equitativa em relação aos estrangeiros que hoje vivem em Portugal.
As declarações do presidente angolano provocaram uma reação imediata e contundente de André Ventura, líder do partido Chega e figura de destaque da direita populista em Portugal. Em entrevista à SIC Notícias, Ventura classificou João Lourenço como um “ditador sanguinário” e acusou-o de tentar interferir nos assuntos internos do país. Ao reafirmar a soberania nacional, foi categórico: “Em Portugal, mandam os portugueses.” Essa atitude já havia se manifestado durante a visita do presidente Lula, quando Ventura convocou uma megamanifestação e o acusou publicamente de ser um "ladrão".
A partir das plataformas digitais, que funcionam como mecanismos alternativos para o exercício da democracia, bem como espaços de construção, disputa e negociação de narrativas mnemônicas (Assmann, 2011; Halbwachs, 1990), cidadãos opositores — tanto partidários quanto apartidários, incluindo alguns ativistas — expressaram suas reações às palavras de Ventura, que repercutiram nas redes sociais, assumindo um tom de aplauso por parte dos críticos do presidente João Lourenço.
Embora muitos cidadãos angolanos critiquem severamente o governo de João Lourenço e o MPLA — frequentemente acusados de práticas autoritárias e de violações dos direitos humanos, sustentando uma suposta democracia que não se baseia nos princípios da isonomia, isotimia e isagoria —, a onda de apoio manifestada por milhares de angolanos, tanto no território nacional quanto na diáspora, à atitude “ignóbil” de André Ventura em relação ao presidente João Lourenço, representante (des)legítimo do Estado angolano no plano interno e internacional, revela, em parte, uma preocupante erosão do sentimento de pertença nacional e do compromisso com a defesa da soberania de Angola. Essa reação evidencia uma crescente fragilidade da nação enquanto comunidade imaginada (Anderson, 1983), potencialmente ameaçada por um processo de desintegração estrutural e simbólica.
A ideia de nação, conforme nos recorda Bonavides (2000), constitui-se como um ato de vontade coletiva forjado por sentimentos históricos — evocando tanto períodos de prosperidade quanto momentos de provação, como guerras, revoluções e catástrofes. Em situações de conflito ou opressão, os grupos humanos tendem a desenvolver uma solidariedade horizontal, que os leva a lutar e, se necessário, a morrer, mesmo sem se conhecerem pessoalmente.
No contexto angolano, essa lógica se manifesta na memória coletiva da longa luta contra o colonialismo português, que culminou com a Proclamação da Independência em 11 de novembro de 1975, assim como na resistência travada durante a guerra civil (1975–2002). Ambos os episódios representam o auge de uma vontade coletiva de autodeterminação e soberania nacional. No entanto, a atual incapacidade de mobilização em torno da defesa simbólica da dignidade do Estado — mesmo diante de afrontas externas, como o discurso provocador de André Ventura — coloca em dúvida a continuidade dessa herança histórica de coesão e sacrifício coletivo, que talvez a velha e nova geração de angolanos não tenha sabido preservar.
Alguns angolanos, ao manifestarem apoio a André Ventura nas redes sociais, expressam — com alguma razão — o seu descontentamento e cansaço face ao desmantelamento progressivo do Estado de bem-estar social em Angola, uma estrutura que, apesar das suas limitações, tem resistido por quase meio século. No entanto, ao fazê-lo, muitos parecem carecer de uma consciência histórica mais ampla — e, em certos casos, também de consciência racial, de classe e da posição que o Sul global ocupa dentro da lógica de dominação neoliberal — sobre de que lado da história realmente desejam estar: se do lado dos oprimidos ou dos opressores.
André Ventura encarna, de forma particularmente alarmante, o ideal da nova extrema-direita europeia: uma corrente marcada pelo negacionismo histórico do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, da escravidão, do colonialismo, e pela defesa de uma retórica agressivamente anti-imigração. Essa retórica está inserida em um projeto ideológico mais amplo, que busca negar as relações estruturais de dominação e exploração que sustentam o sistema capitalista global. Como destacam Magalhães e Almeida (2022), a dominação exercida pelos centros capitalistas sobre as periferias do sistema mundial inclui também a produção e disseminação de uma ideologia cuja função é justamente encobrir essas relações de poder.
Ventura não hesita em responsabilizar os imigrantes — muitos deles africanos — por supostamente ameaçarem as oportunidades econômicas da população local, ou, como prefere dizer, dos “verdadeiros portugueses”.
A nova extrema-direita, que hoje se apresenta como uma ameaça real aos direitos humanos e à democracia, tem experimentado uma ascensão vertiginosa em escala global. Das Américas à Europa, assistimos, nos últimos anos, à chegada ao poder de diversos líderes populistas radicais, cujos discursos mobilizam o medo, o ressentimento e o nacionalismo excludente para consolidar projetos autoritários.
Nas Américas, destacam-se a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2016, Jair Messias Bolsonaro no Brasil em 2018 e Jeanine Áñez que assumiu a presidência interina da Bolívia em 2020. Na Europa, a Hungria é governada por Viktor Orbán desde 2010, enquanto Mateusz Morawiecki ocupa o cargo de primeiro-ministro da Polônia. Na Itália, Giorgia Meloni, líder da extrema-direita, assumiu o posto de primeira-ministra em 2022. Em Portugal, o partido Chega teve um crescimento expressivo nas últimas eleições. Na França, Marine Le Pen obteve 41,45% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Já na Espanha, o partido Vox, fundado em 2013 e liderado por Santiago Abascal, consolidou-se como uma força política significativa (Pereira, 2023).
O que une todos esses líderes e movimentos é o uso recorrente de discursos de ódio contra minorias, o desrespeito pelas normas democráticas — ainda que neguem publicamente esse fato — e o apoio massivo de segmentos da população que compartilham suas ideias e valores. Segundo Traverso (2021), essa nova direita radical busca mobilizar as massas em torno de um discurso nacionalista que propõe o "despertar da nação", clama pela expulsão de elites corruptas vinculadas ao capitalismo global e responsabiliza as políticas migratórias pela suposta "invasão islâmica" e pelo descontrole das fronteiras na Europa.
Há uma linha tênue entre liberdade de expressão e discurso de ódio, e desde a ascensão desses grupos ao poder, essa discussão tem ganhado cada vez mais relevância. Muitos desses líderes utilizam esse tipo de retórica para atacar grupos sociais específicos, o que é extremamente grave, inaceitável e pode resultar em agressões físicas, violações dos direitos humanos e impactos diretos sobre populações vulneráveis, como negros, imigrantes, minorias religiosas, povos originários e a comunidade LGBTQIA+ Wendy Brown (2006) e Ruth Wodak (2015).
Esses líderes frequentemente promovem, defendem ou incitam, de forma direta ou velada, a difamação, o ódio e a desumanização de indivíduos ou grupos. Seus discursos incluem assédio, insultos, estereótipos negativos, estigmatização e ameaças, frequentemente justificados com base em características como raça, cor, etnia, origem nacional, religião, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência, entre outros.
Um exemplo claro é Donald Trump, que chegou ao poder com um discurso fortemente xenófobo e racista, propondo, entre outras medidas, a construção de um muro separando os Estados Unidos do México. No Brasil, Jair Bolsonaro utilizou um discurso de ódio contra a esquerda, especialmente contra o Partido dos Trabalhadores e o ex-presidente Lula da Silva, retratando-os como inimigos públicos. Além disso, sua retórica incluiu misoginia, homofobia, racismo e ataques aos povos indígenas, tendo como símbolo de campanha o gesto de uma arma com as mãos.
Na Europa, o mesmo padrão se repete. Embora adaptados às especificidades culturais de cada país, os discursos desses líderes seguem uma lógica comum de exclusão, intolerância e radicalização — ainda que a maioria deles negue ser extremista ou ter qualquer vínculo com o passado nazifascista.
Sobre essa realidade, Löwy (2015) identifica ao menos três tipologias distintas da extrema-direita europeia na atualidade. A primeira é composta por partidos abertamente fascistas ou neonazistas, como o Aurora Dourada, da Grécia; o Jobbik, da Hungria; o Setor Direito, da Ucrânia; e o Partido Nacional Democrata, da Alemanha, além de outras legendas com menor força e influência.
Em segundo lugar, estão os partidos considerados semifascistas. Esses mantêm raízes e elementos fortemente associados ao fascismo, embora não se encaixem completamente no modelo clássico do século XX. Exemplos incluem a Frente Nacional, da França; o FPÖ, da Áustria; e o Vlaams Belang, da Bélgica. Os fundadores dessas siglas mantinham vínculos estreitos com o fascismo histórico e, em alguns casos, colaboraram com o Terceiro Reich. Muitos de seus membros atuais não escondem a nostalgia pelo passado autoritário.
Por fim, Löwy destaca uma terceira categoria: partidos de extrema-direita que não têm origem direta no fascismo, mas compartilham traços ideológicos semelhantes, como o racismo, a xenofobia, o discurso anti-imigração e a islamofobia. Entre eles, estão a Lega Nord, da Itália; a União Democrática do Centro (UDC), da Suíça; e o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP).
Ao não hesitar em adotar posturas ofensivas e provocadoras contra países soberanos — como se viu recentemente no caso de Angola e, anteriormente, do Brasil, cujo presidente foi publicamente chamado de 'ladrão' — André Ventura não apenas dá voz a uma retórica populista e agressiva, como também revela algo mais profundo: o ressentimento mal digerido de uma elite portuguesa que jamais soube lidar com o fim do império colonial, nem aceitou a perda de uma posição hierárquica que outrora lhe permitia subalternizar essas nações.
A afirmação de Ventura de que "em Portugal mandam os portugueses" soa contraditória quando acompanhada de constantes tentativas de ingerência nos assuntos internos de países que outrora foram colônias, mas que hoje são nações independentes e soberanas. Angola conquistou a sua independência em 1975, após uma longa luta contra o regime colonial português, marcada por guerras de libertação que exigiram sangue, suor e lágrimas. O Brasil, por sua vez, rompeu oficialmente com Portugal em 1822, após um processo de independência relativamente pacífico, mas que simbolizou uma reconfiguração definitiva da ordem imperial.
Essas nações, como outras ex-colônias, não devem satisfações a Portugal — muito menos a figuras políticas que tentam impor uma visão neocolonialista travestida de patriotismo. A narrativa de Ventura, enraizada em slogans como "Deus, pátria e família", recicla elementos do salazarismo e da extrema-direita europeia contemporânea, negando a diversidade e tentando restringir o acesso de minorias a direitos e oportunidades.
Ao valorizar uma ideia de "identidade nacional" baseada numa noção implícita de pureza racial — muitas vezes associada à branquitude — Ventura ignora (ou rejeita) o fato de que o mundo se tornou mestiço há mais de 500 anos. E essa mestiçagem foi, em grande parte, provocada pelo próprio projeto colonial português, que ao longo dos séculos XVI a XX impôs sua presença sobre povos africanos, americanos e asiáticos em nome de uma suposta missão civilizadora.
Portanto, não é a África, nem as Américas ou a Ásia que impuseram a mistura cultural e étnica ao mundo. Foram os próprios portugueses, com seu projeto imperialista e megalômano, que desencadearam um processo histórico irreversível. Diante disso, Ventura e a sua visão de mundo não têm nada a ensinar aos povos que conquistaram sua liberdade com resistência e sacrifício.
Pelo contrário, é a democracia portuguesa — plural, aberta e diversa — que deve ser defendida contra qualquer tentativa de regressão autoritária ou revivalismo imperial.
A consciência histórica constitui um elemento essencial para que os angolanos possam compreender, com maior profundidade, os posicionamentos que emergem na esfera pública. De acordo com o historiador Jörn Rüsen (2001), a consciência histórica é uma forma de orientação temporal por meio da qual os sujeitos interpretam o passado com o objetivo de dar sentido ao presente e projetar possibilidades para o futuro. Trata-se, portanto, de um processo contínuo de construção de identidade e de significados, no qual a experiência histórica e sua narração desempenham um papel central.
Como argumenta Diehl (2002), é por meio da memória — especialmente da memória histórica, em suas múltiplas possibilidades de leitura — que se revelam os escombros, as ruínas e os processos de desintegração. A memória, nesse sentido, torna-se testemunho de um passado que o ideal de progresso tentou apagar ao romper com estruturas tradicionais, contribuindo, paradoxalmente, para o desenvolvimento de uma consciência histórica mais lúcida acerca dos próprios processos históricos.
Nesse contexto, é imprescindível considerar o projeto colonial — ainda que se deva evitar anacronismos — como uma construção sustentada, segundo Achille Mbembe (2020), por uma lógica de dominação que aprisiona o sujeito numa teia de sortilégios. Tal dominação é tão profunda que compromete sua capacidade de ver, compreender, sentir, mover-se, falar, imaginar e até mesmo sonhar — tudo passa a ser mediado por um “significante-mestre” que o subjuga, fazendo-o tropeçar diante da própria existência.
Esse legado colonial permanece vivo nos discursos contemporâneos da extrema-direita, que, sob a aparência de uma retórica de bem-estar — frequentemente legitimada pelo neoliberalismo e por uma suposta reorganização da democracia global — se apresentam como "novos messias" frente a uma alegada decadência da humanidade. Na prática, contudo, operam como negacionistas dos longos e violentos passados coloniais, reafirmando o ódio às minorias e reiterando paradigmas excludentes.
Desenvolver uma consciência histórica é, antes de tudo, um exercício crítico de aproximação com o passado. Isso envolve frequentar arquivos, bibliotecas, museus e monumentos; caminhar “com a carta na mão pelo campo, mas também pela cidade, com os olhos abertos ao espetáculo da rua” — não como turistas desinteressados, mas como cidadãos ativos, críticos e, quando necessário, engajados (Glénisson e Campos, 1991). Essa postura é essencial para romper com os paradigmas hegemônicos impostos, especialmente por discursos da extrema-direita — como aqueles representados por figuras como André Ventura e defender a soberania e o interesse nacional.
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